terça-feira, 7 de outubro de 2008

Nada

Às vezes eu me pergunto se é uma boa idéia publicar as coisas que eu escrevo aqui neste blog.

É um espaço público, e ainda que seja pouco visitado, é um meio para se publicar aquilo que eu por ventura venha a escrever.

Por outro lado, no entanto, eu deixo de ser "dono" total da minha criação. Foi dito certa vez que a obra só pertence ao autor enquanto ele a escreve. Depois disso ela é do leitor, que é livre para ler e interpretar a obra como bem quiser... Contudo, se o autor nunca mostrar sua obra ao público, ela sempre vai ser dele. Tem uma lógica meio maluca só minha, e é um dos motivos pelo qual nada que eu tenha escrito (que não tenha sido destinado exclusivamente para este blog) tenha vindo parar aqui.

Ainda, como uma também conseqüência da perda da "exclusividade" do meu texto, ele passa a ser grátis. Não que eu seja um porco chouvinista capitalista mesquinho. Mas perde-se o sentido de se pensar em publicar, por vias tradicionais, aquilo que já está aqui, de graça (ok, nem tanto assim, talvez seja apenas egoísmo meu).

O outro grande motivo é a freqüente falta de revisões dos meus textos. Veja, eu gosto de revisar meus textos de tempos em tempos, e nunca tenho certeza de quando eles estão em sua versão definitiva ou não.

De qualquer forma, pelo sim ou pelo não, vou arriscar publicar um conto aqui. Curto, escrevi de sopetão e só revisei esses dias, alguns meses depois. Não mudei muita coisa, então é bem provável que eu tenha que revisá-lo novamente...

(ah, sim, copiei e colei do editor de texto, o que fez com que a formatação original se mantivesse)





Nada
Osvaldo Ken Kusano

“Wer mit Ungeheuern kämpft, mag zusehn, dass er nicht dabei zum Ungeheuer wird. Und wenn du lange in einen Abgrund blickst, blickt der Abgrund auch in dich hinein.”
-- Friedrich Nietzsche in Jenseits von Gut und Böse

Acordou cedo, sem a ajuda usual do despertador. Arrumou a cama com esmero, escovou os dentes de forma cuidadosa, barbeou-se com cuidado único, separou a roupa usada e tomou um resoluto e demorado banho frio.

Sentou-se sobre as próprias pernas, os joelhos sobre o carpete em frente à janela por onde invadia a amena luz do sol com a qual deixou-se secar.

Quando os sinais de fome lhe abandonaram o espírito, comeu um mingau de trigo integral que fez usando apenas água e sal.

Vestiu-se com capricho e dirigiu-se ao prédio onde trabalhava.

Subiu as escadas até o topo do prédio. Caminhou até o parapeito e encarou a descida.

Contemplou o abismo.

* * *

“Estás pronto para devorar-me?”

“Não há mais fome”, respondi ao abismo.

“Então devorar-te-ei.”

“Não há mais carne para ser devorada”

Sempre fui um homem de dúvidas, nunca um homem de crenças. A incerteza me levou a erros nunca corrigidos por medos que a certeza nunca afastou.

“Devoro-te os ossos então.”

“Aqui não há mais o fraco que um dia eu fui.”

“Nada pode passar por mim.”

* * *

Carros e ônibus fumegantes cruzam as ruas abaixo do homem no topo do mundo. Pessoas passando apressadas sem se dar conta daquele acima delas.

Ignorado pela multidão, um mendigo sujo estende a mão pedindo esmolas, as chagas comendo-lhe a pele, a fome ulcerando seu estômago. Do outro lado da rua, uma mulher bem vestida joga fora metade de um sanduíche enquanto fala ao celular.

Uma freada brusca e alguém gritando de dentro de um carro, a buzina acompanhando-o no tempo e ritmo do coral.

Para o homem que observa o mundo, não passam de formigas. Não há emoções ou sentimentos sobre os insetos.

* * *

Há um túnel diante de mim. Atrás não há mais nada. Não há paredes ou pedras ou nada que o forme senão a escuridão, mas ainda assim há um túnel diante de mim. O pequeno ponto de luz no final me diz que há um túnel diante de mim. E não fosse a luz, fraca demais para iluminar, mas forte o suficiente para definir a escuridão, eu não saberia que há um túnel diante de mim.

* * *

Nas ruas, um jovem com fones de ouvido, desligado do mundo que o cerca, deixa uma moeda gorda na mão do mendigo e passa olhando para trás.

Não fosse ter trombado no terno e gravata que segue resmungando, teria visto o mendigo agradecer aos céus e parar observando o alto do prédio sobre si.

O homem salta.

* * *

Eu mergulho na escuridão. Por momentos, o abismo é aconchegante. Ele me abraça e me mima e me faz promessas. Eu quero ficar aqui para sempre.

Mas eu devo seguir em frente. É só depois de atravessar o túnel que eu verei a luz.

Tenho total consciência de mim mesmo e o abismo percebe isso.

“Quem você acha que é?”

“Eu sei o que eu sou, eu sei quem eu sou.”

“Por que vem aqui me perturbar?”

“Há um caminho a ser seguido.”

Eu posso alcançar a luz.

“Não há nada depois de mim. Eu sou tudo o que foi, é ou será.”

“Você não pode sê-lo, não há escuridão em mim.”

“Você tem certeza disso? Você sempre teve certeza disso?”

A luz me chama em silêncio. Eu posso atravessar o caos que me cerca.

“Esse seu corpo nu e fraco pode caminhar pelo fogo e pelo frio?”

Eu me calo para não dar ao abismo a carne que ele reclama. A luz ainda ao longe. Eu quero alcançá-la.

“Onde estão suas palavras? Onde está sua convicção?”

Eu sei que a luz se aproxima, mas ela ainda está longe. O túnel começa a tomar formas e sentido. Já não tenta mais me seduzir e eu não quero mais ficar aqui.

“Mostra-me quem você é, homem, pois eu já o sei.”

A luz nunca chega. Eu quero alcançá-la, mas ela nunca chega.

“Você não é nada. Nada pode passar por mim.”

As formas da escuridão gritam cada vez mais nítidas. Um fio de suor gelado corre por mim. A luz, ainda longe.

“Você sequer sabe o que é aquilo que você deseja.”

Eu vejo um rosto pustulento comido pelas chagas gritar e fecho meus olhos.

“Nada pode passar por mim.”

MMVIII

Um comentário:

GE{[Sakura]} disse...

Gostei :) Bem descritivo.... lembrei um pouco da Clarice Lispecor.